domingo, 3 de maio de 2009

Uma Criatura

Machado de Assis

Sei de uma criatura antiga e formidável, 
Que a si mesma devora os membros e as entranhas
Com a sofreguidão da fome insaciável. 

Habita juntamente os vales e as montanhas; 
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo, 
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas. 

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo; 
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso, 
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo, 
Gosta do colibri, como gosta do verme, 
E cinge ao coração o belo e o monstruoso. 

Para ela o chacal é, como a rola, inerme; 
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme. 

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra, 
Depois a flor, depois o suspirado pomo. 

Pois essa criatura está em toda a obra: 
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto; 
E é nesse destruir que as suas forças dobra. 

Ama de igual amor o poluto e o impoluto; 
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida

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